A luta das mães que tem filhos na UTI
Com os avanços da medicina,
bebês debilitados e com síndromes raras sobrevivem. Eles dependem de UTI
e da força ímpar de suas mães.
A aeroviária Rosana Greco e o filho, que nasceu há seis meses e respira com a ajuda de aparelhos
"Não penso sobre quanto tempo Fernandinho vai viver. As outras crianças
entram e saem. Meu filhote e eu vamos ficando. A cada mês faço uma
festa de aniversário"
Rosana Greco
Contam-se no país 16 678 leitos em unidades de terapia intensiva para
recém-nascidos e crianças. Desse total, um quinto é ocupado por
pacientes crônicos em internação prolongada por meses ou anos. Quase 3,4
mil brasileiras estão enclausuradas nessas UTIs enquanto os filhos
desafiam a morte. Muitas vezes sem ver a luz do sol e a cor da rua, elas
se exilam da vida profissional e pessoal, deixam de lado o marido e os
outros filhos. Cercadas de monitores, cateteres, tubos, bombas de
infusão e respiradores que avivam seus pequenos, enfrentam um jogo de
tudo ou nada. O que sabiam antes pouco serve no estressante mundo
hospitalar: elas têm de aprender a ser mãe de quem está por um fio.
Devem lidar com um corpo frágil, que nem sequer pode mamar seu leite e
se aquecer no seu colo. A rotina da criança tampouco lhes pertence –
médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e fonoaudiólogos decidem tudo. À
primeira vista, o grupo mais parece um batalhão de intrusos
interpondo-se na relação mais tenra, primitiva e indispensável que se
estabelece entre mãe e bebê no início da existência dele. É preciso
lucidez – algumas entrevistadas citam também espiritualidade – para
assimilar a árida realidade de uma UTI.
Primeiro, pelo inesperado. A gestante entra na maternidade para parir
um sonho e, no lugar dele, se depara com doenças incuráveis e
adversidades. Em geral, é este o enredo: elas perdem o chão com a
notícia de que o rebento não deixará o hospital. Mesmo informada pelo
exame cariótipo fetal de que o filho nasceria com síndrome de Edwards, a
fotógrafa Daniela Nunes Frison, 34 anos, só viu a tradução disso na
prática. “Raphael saiu da sala de parto direto para a UTI da Pro Matre,
em São Paulo. Nunca foi para casa”, conta. Não demorou a perceber que
perdera o protagonismo. “Havia uma emergência, meu bebê precisava dos
médicos para se salvar.” Aos 4 meses, o menino foi de ambulância para o
Hospital Infantil Sabará, onde ocupa um dos 28 leitos da UTI pediátrica,
morada de outros quatro doentinhos crônicos. “Eu li tudo sobre o
assunto”, diz a fotógrafa apontando o laptop. “A síndrome causa
problemas neurológicos, cardíacos e pulmonares, torna o portador
incompatível com a vida.” A despeito disso, a mãe canta para o filho,
conversa. “Digo que ele tem uma irmã, Giovanna (4 anos), que o espera lá
fora. Peço que resista e se aprume, porque o pior já passou.”
O resumo feito, no mesmo Sabará, pela guia de turismo Patrícia Longo
Schneider, 37 anos, é real e preciso: “Perdi meus poderes”. Sentiu-se
impotente nas vezes em que o filho foi reanimado em paradas cardíacas,
resgatado de convulsões e entubado. Patrícia, a ágil e experiente mãe de
segunda viagem – tem Beatriz, 5 anos –, uma expert em dar banhos e
fazer papinhas, se esvaziou. Seu Bernardo, 9 meses, teve os dois rins
retirados na tentativa de contornar a síndrome de Denys-Dhash, que
produz tumores nesses órgãos. “Fiquei amuada no meu canto vendo a
correria em torno dele. O máximo que fazia era tocar de leve a
cabecinha, com medo de desligar cabos que o conectavam às máquinas. Só o
coloquei no colo aos três meses de internação. Pensei: ‘Sou mãe, ele é
meu, de novo’.” Em agosto, o bebê chegou a trocar a UTI por um quarto no
hospital, mas pegou uma virose e voltou. Há oito meses, se submete a
sessões diárias de hemodiálise. Terá de ganhar peso para enfrentar um
transplante renal.
Voltar ao trabalho?
"UTI tem altos e baixos e exige paciência. É como se Larissa subisse uma escada com dificuldade. Ela toma fôlego e recomeça."
Ducineli Botelho
"A medicina criou uma geração de crianças que dependem de suporte para
viver. Precisam de traqueostomia, gastrostomia, cuidados para evitar
embolia..."
Eduardo Troster, coordenador médico da UTI pediátrica do Hospital Albert Einstein
Mãe de dois adolescentes, de 17 e 15 anos, a aeroviária Rosana Greco
Fernandes, 39 anos, não contava com a síndrome de Patau em seu caçula,
Fernando, 6 meses, fruto de uma gestação-surpresa. “Procuro não pensar
quanto tempo o meu filhote vai viver. As outras crianças entram e saem;
Fernandinho e eu vamos ficando. A cada mês completado, faço uma festa de
aniversário”, revela no Hospital São José, no Rio de Janeiro. Esperto,
ele acompanha com o rosto a voz de Rosana. “Meu bebê nasceu sem o nervo
óptico e não enxerga. Tem seis dedinhos, um defeito no pênis e a
epiglote dele é tão fina e mole que não consegue engolir. Depende de
sonda para se alimentar”, afirma. Ela está às voltas com um dilema: terá
de reassumir o trabalho, na Gol Linhas Aéreas, e ficará bem menos tempo
com o filho.
O problema profissional de Ducineli Botelho, 35 anos, professora da
Universidade de Brasília, foi resolvido com uma licença. O marido, José
Setubal, também funcionário público, se transferiu para São Paulo. Ambos
permanecem com Larissa na UTI do Hospital Israelita Albert Einstein. Já
vai fazer dois anos. Em outubro de 2009, a mulher visitava a família em
Fortaleza quando descobriu que o líquido amniótico havia secado. Ao
parto de emergência se seguiram 40 dias de sufoco. O diagnóstico de
Larissa era uma interrogação, a barriga dela distendia – e ainda pegou
uma infecção generalizada. “A equipe disse que não havia nada a fazer e
que minha filha não aguentaria a viagem para um centro maior”, lembra
Ducineli. Sua resposta à época comprova o perfil heroico que começava a
incorporar: “Se ela vai morrer, prefiro que morra tentando”. Numa UTI
aérea, voou com marido e bebê. “A epopeia durou 12 horas, com
turbulência, duas aterrissagens e parte do caminho feito de ambulância,
porque o Aeroporto de Congonhas não autorizou o pouso.” A confirmação da
doença renal policística autossômica recessiva levou Larissa à sala de
cirurgia para a retirada dos dois rins. Em janeiro deste ano, voltou
para um transplante. Mas está entubada, pois seu organismo miúdo ainda
rejeita o órgão herdado de uma criança de 3 anos. Vai manter-se em
hemodiálise até o novo rim engrenar. “Para estar aqui, é preciso três
coisas”, revela a mãe. “Fé em Deus, amor incondicional e paciência. É
como se Larissa estivesse subindo uma escada com muita dificuldade. Ela
para, toma fôlego, se reanima e recomeça.” Enquanto isso, Ducineli
espera. E produz muito leite. Doa parte para um banco. “Já foram
inúmeros litros do meu sangue branco.”
Traço comum às quatro entrevistadas: a esperança desmedida de dias
melhores. “A medicina não é uma ciência exata e ao médico não cabe ser
prepotente. Não se pode dizer que elas estejam erradas no otimismo”, diz
Eduardo Troster, coordenador médico da UTI pediátrica do Einstein, com
30 anos de experiência. “Antes, bebês como esses, considerados
inviáveis, morriam. Com os avanços da medicina e da tecnologia, cada vez
temos mais pacientes crônicos e complexos na UTI. Criamos uma geração
de crianças que dependem de suporte para tudo: de traqueostomia para
respirar, gastrostomia para se alimentar, prevenção de osteoporose,
porque ficam imobilizadas, cuidados para evitar trombose e embolia
pulmonar, entre outros.” O perfil da mãe também mudou. “Ela acaba se
tornando especialista naquela criança e dá informações para a equipe.
Põe a máscara, participa de procedimentos invasivos, é mais uma pessoa
para ajudar a evitar erros”, enumera. A vinda das mães para o front é
recente. “Só em 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os
hospitais foram obrigados a aceitar um dos pais em tempo integral”,
lembra Lucília Santana Faria, 22 anos de UTI pediátrica, coordenadora
médica da unidade do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. “Antes, elas
visitavam os filhos por uma hora e tinham de sair. Choravam na porta, as
crianças lá dentro.” Ainda hoje, há médicos que se queixam de que mães
atrapalham e a qualquer alteração no monitor, colocam a enfermagem em
pânico. “Discordo, o benefício é maior. A criança fica calma, sente-se
segura, cria condições para a melhora”, relata Lucília.
Em último lugar
"Canto, converso, peço para o Rafa resistir. Ainda não sei se ele vai
conseguir ver, andar e falar. Mas estarei sempre com ele."
Daniela Frison
As mulheres pagam um preço alto por tanta valentia, sacrificando a
própria saúde. “Esquecem de si, ignoram sintomas, muitas vezes ficam
próximo de se despersonalizar”, diz Germana Savoy, psicoterapeuta do
Sabará. “Fazemos tudo para humanizar a UTI, mas acontece.” Ela explica:
“Desautorizadas na maternagem, porque a equipe sabe mais que elas, podem
evadir-se da sua função, deixar o bebê. Ou ocorre o oposto, quando se
envolvem muito com a patologia do filho, rompem laços sociais,
familiares e profissionais”. Para suportar, vão se adaptando ao
ambiente, que é agressivo. “A estética hospitalar, o ruído dos aparelhos
e alarmes, as emoções dramáticas nos corredores, tudo é pesado demais”,
observa Germana. “E elas acabam de pendentes do ambiente, como a vítima
de seu agressor.” Ocorre também culpa exacerbada, em mães que se julgam
responsáveis pela anomalia do filho. E ainda depressão, síndrome do
pânico, distúrbios de sono e alimentares.
A dedicação exclusiva ao filho faz os homens se afastarem. Na UTI, de
cada dez casadas, três são abandonadas pelo marido nos primeiros seis
meses. Em um ano de internação, a separação atinge 50%; acima desse
período, 70%. “Às vezes, sou dura, digo para uma mulher que deve sair
para jantar com o marido, ir às sessões de musicoterapia do hospital”,
conta Lucília. Ela narra um episódio de extremo adoecimento. Depois de
perder o filho, a mãe quis ajudar a preparar o corpo. Findo o processo,
comunicou que se arrumaria para acompanhar a criança. A equipe imaginou
que se referia a ir no carro funerário para a cidade da família. “Mas
estava sendo literal: foi ao hotel onde costumava tomar café da manhã,
subiu até o último andar e se atirou”, lembra Lucília. “Perder um filho
não tem nome. Há uma inversão na ordem natural da vida, e isso pode ser
insuportável”, observa o doutor Troster.
“Eu já conversei com Deus: se for impossível a recuperação do Rafa, ele
pode decidir. Eu vou aceitar”, afirma Daniela. Ela se apoia no grupo do
Facebook “Mães da UTI”, onde se leem frases como: “Os filhos não são
nossos. Recordam-se? Foram apenas emprestados”. Exuberante no seu
otimismo, Patrícia estende às outras mulheres da UTI suas descobertas.
Algumas delas: “Chorar perto do filho atrapalha”; “Na UTI, dorme-se duas
horas, a insônia destrói, traz desânimo, faz a gente ver defeitos nos
médicos, na instituição. Nessa hora, o remédio é descansar”. Então, ela
sai de cena e cochila na sala dos pais. Desde dezembro longe de sua Mogi
das Cruzes (SP), Patrícia voltou para casa uma única vez, no Dia das
Mães, e teve uma conversa com Beatriz. “Eu disse: ‘Filha, o Bernardo
está muito, muito doente. Os médicos estão fazendo tudo para ele sarar e
não virar uma estrelinha’. E minha menina entendeu: ‘Mãe, virar estrela
é morrer, não é?’ Explicar a morte quando ela pode estar tão perto de
nós não é tarefa fácil.”
Imaginação e equilíbrio
"Eu tocava a cabecinha de Bernardo, de leve, com medo de desligar os
cabos que o ligavam às máquinas. Peguei no colo aos três meses de UTI.
Pensei: ‘Ele é meu, de novo’."
Patrícia Schneider
Elas recorrem a lembranças prosaicas para não perder o prumo. Ducineli
se entrega ao verde. “Tenho saudade de andar pela natureza, em Brasília.
Fecho os olhos, enxergo o lago Paranoá. Estou sedentária, engordei 22
quilos, me faz falta caminhar.” Patrícia se imagina dormindo na própria
cama, de pijama – na UTI deita-se de camiseta e calça bailarina –,
lavando o cabelo sem pressa, comendo em prato de louça no lugar do
marmitex plástico. Daniela diz que a família está balançada, e fica
pensando em um jantar calmo com a filha, Giovanna, tendo Rafa ao lado e o
marido, Marcos, servindo queijo e cervejinha. Rosana restaura a memória
da época em que, nas pausas, ficava de papo para o ar, sem relógio. Ou
vendo um filme. UTI, no entanto, requer ação e não sonho. Então, sempre
que podem dão uma escapadinha, deixando um parente no posto. Ducineli
tratou de alugar um apartamento e corre para o refúgio de madrugada,
cozinha com o marido, respira. “Se você não está inteira, só atrapalha.
Também aprendi a confiar na equipe.” Ao lado da filha, escreve uma tese
de doutorado que entregará no fim do ano. Daniela tenta trabalhar à
beira do leito. “Minha vida parou, perdi negócios, tenho que voltar a
fechar contratos de cobertura fotográfica de eventos infantis”, afirma.
Ela convoca profissionais para substituí-la e edita no computador as
imagens que eles enviam. Procura nem pensar que o marido pode se
encantar com outra. “Não dá tempo de namorar, estou esgotada”, diz.
Conta que o aperto de mão e o abraço forte de Marcos já rendem prazer.
Patrícia crê que “a cumplicidade do marido é mais forte que noites de
amor”. Para Rosana, sexo virou comemoração: “Depende de Fernandinho. Se
ele está bem, a gente relaxa, tem clima. Se não respira direito, Sérgio e
eu só falamos nisso”.
As entrevistas são permeadas de grandes achados. Ducineli, por exemplo,
não precisa de mais nada: “Saí de Brasília com uma malinha de grávida,
cheguei a São Paulo com roupas emprestadas e, mesmo acampada, estou
muito bem”. Entendeu também que UTI “não é fim de linha para pacientes
terminais, mas para quem precisa de cuidados especiais”. Elas são
unânimes em declarar que as crianças ensinaram “a olhar o problema de
frente”, que mudaram suas crenças e as levaram à compreensão de que a
vida não nos pertence. “Planos”, diz Patrícia, “não devem nos guiar –
ganhar um dia já é vitória.” Mas elas não declamam apenas lições
subjetivas. Advogam para si o direito ao home care. Com uma estrutura em
casa parecida com a de uma UTI, poderiam integrar o filho à família.
Estão brigando com os convênios, fazem ofícios, enviam laudos médicos,
pedem liminares na Justiça... Mas essa é uma outra história de
resiliência materna para contar depois.
Fotos Daniela Frison, Ducineli Botelho, Patrícia Schneider, Chris
Parente; Rosana Greco, Marcelo Correa/Produção Chris Böller/Cabelo e
maquiagem, Aurora Porto
Fonte: Revista Claudia
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